Em 15 de abril de 1923 a insulina se torna disponível para uso em larga escala por pacientes que sofrem de diabetes. O diabetes mellitus é uma das principais doenças abordadas pela Endocrinologia Veterinária e, em homenagem a esta data, a ABEV apresenta aqui o artigo especial do Prof. Dr. Álan Gomes Pöppl, Médico Veterinário, sócio-fundador da Associação Brasileira de Endocrinologia Veterinária, Professor Adjunto da UFRGS.  

A Bela História da Descoberta da Insulina e Dicas de Manejo

 

O QUE É DIABETES MELLITUS?

A Diabetes Mellitus é uma doença complexa e multifatorial caracterizada por uma disfunção no metabolismo de carboidratos, proteínas e lipídios decorrente de uma menor secreção de insulina, menor ação periférica da insulina, ou ambas. O distúrbio tem como sua principal característica a hiperglicemia (elevação de açúcar no sangue) que quando associada a glicosúria (perda de glicose na urina), provoca os sinais clássicos da doença de maior produção urinária, e a excessiva sede compensatória (poliúria e polidipsia).  

O QUE É A INSULINA?

O que é exatamente esta tal insulina? Basicamente podemos considerar esta proteína como um dos principais hormônios anabólicos conhecidos. A insulina é secretada pelas células beta pancreáticas, as quais se encontram nas milhares de ilhotas de Langerhans identificadas no tecido pancreático. O pâncreas é um órgão que apresenta funções digestivas e endócrinas. 98% do tecido pancreático é responsável pela secreção de enzimas digestivas para o intestino. Em contrapartida, as ilhotas de Langerhans representam a porção endócrina do pâncreas, e secretam além da insulina outros hormônios importantes para o equilíbrio do metabolismo, em especial, o metabolismo da glicose.  

UMA BREVE HISTÓRIA DA DIABETES

A diabetes é uma doença descrita há milênios, tendo seus primeiros registros no papiro de Ebners no antigo Egito, por volta de 1500 A.C. No entanto, o nome diabetes só passou a batizar a doença no século II da era moderna, devido as observações de Aretaeus da Capadócia, que caracterizou o quadro clínico como um “fluxo de água incessante, como a abertura de aquedutos”, pois era impossível fazer os pacientes pararem de urinar e/ou beber água. Além disso, caracterizou a doença como um “derretimento da carne e membros em urina”, uma curiosa definição que reporta bem a patogenia da doença, associada à severo catabolismo muscular e adiposo, levando a uma maior produção de glicose pelo fígado; porém com desperdício desta, através da urina. A sabedoria oriental descrevia nos Vedas (livros sagrados, séculos III e IV D.C.) esta condição associada a uma urina doce, que atraia formigas e outros insetos. No entanto, somente a partir dos séculos XVI e XVII atribuiu o sufixo mellitus ao termo diabetes, afim de diferenciar esta condição do diabetes inspidus, outra doença associada a poliúria e polidipsia, porém em decorrência de menor produção/ação do hormônio anti-diurético (ADH), e que provoca urina em grandes volumes, sem cor, gosto ou cheiro (insípida). Ainda nesta época, em 1682 Brunner verificou que a retirada do pâncreas provoca poliúria e polidipsia, mas somente em 1889 von Mering e Minkowski demonstraram que está poliúria e polidipsia estava associada à diabetes mellitus, com perda de glicose na urina e elevação da glicose no sangue. Anos antes, em 1869, Paul Langerhans descreveu as ilhotas pancreáticas, porém sem propor nenhuma função a elas.  Em 1900, Eugene Opie, um instrutor de patologia no Hospital Johns Hopkins descreveu a ocorrência de degeneração das células das ilhotas em pacientes humanos diabéticos. Além disso, em 1901 Ssobolew demonstrou que uma ligadura do ducto pancreático provocava atrofia do tecido exócrino pancreático sem afetar as ilhotas e sem provocar glicosúria em cães, gatos e ratos.  

A DESCOBERTA DA INSULINA

Em 1913, Edward Sharpey-Schäfer propôs que as ilhotas de Langerhans eram responsáveis pela produção de uma secreção capaz de regular o metabolismo da glicose, sugerindo o nome de insulina (do Latim: insula, ilha). No entanto, a insulina só foi caracterizada em 1921 por Frederick Banting. Com estes conhecimentos, nos anos iniciais do século XX, os esforços para desenvolver uma terapia eficaz contra a diabetes se concentravam na administração de extratos pancreáticos aos pacientes diabéticos. Por mais que se documentasse algum efeito de redução na glicemia, os efeitos adversos provocados pela elevada concentração de tripsina e outras enzimas digestivas nestes extratos inviabilizavam seu uso clínico devido a intensa dor e reação local após aplicação. Na época da descoberta da insulina, Banting era um jovem cirurgião formado há pouco mais de 4 anos e que estava lecionando anatomia e fisiologia na Universidade de Western Ontario. Numa noite de insônia preparando uma aula sobre pâncreas, Banting pensava sobre um relato de caso publicado no volume de novembro de 1920 do periódico científico Surgery, Gynecology and Obstretics, no qual Moses Barron da Universidade de Minnesota relatava o caso de um paciente que sofrera uma obstrução total do ducto pancreático por um cálculo. O paciente havia desenvolvido uma completa atrofia do pâncreas exócrino, porém preservara as ilhotas intactas, e não havia se tornado diabético. Banting então fez uma anotação por volta das duas da madrugada em um papel: “Diabetes. Ligar ductos pancreáticos de cães. Manter os cães vivos até que os ácinos degenerem mantendo as ilhotas vivas. Tentar isolar a secreção interna das ilhotas para controlar a glicosúria”.
Seu chefe na época, Prof. F.R. Miller, sugeriu a Banting procurar pelo Prof. John J. R. Macleod, professor e líder do departamento de fisiologia, uma grande autoridade no estudo do metabolismo de carboidratos. Banting teve alguns encontros com Macleod ainda em novembro de 1920. Macleod inicialmente não apostou na ideia de Banting uma vez que ele era apenas um jovem profissional sem nenhum histórico científico e com uma ideia similar à de vários outros pesquisadores renomados que haviam falhado previamente em trabalhos com extratos pancreáticos. Contudo, como ninguém havia testado ainda a administração de extratos pancreáticos de pâncreas degenerados, Macleod por fim abriu as portas de seu laboratório e destinou seu assistente Charles Best para auxiliar Banting em seus experimentos que ocorreram ao longo daquele verão de 1921. Iniciaram-se então as cirurgias para ligadura do ducto pancreático de cães e obtenção posterior de um extrato de pâncreas degenerado. Para testar os extratos, cães eram tornados diabéticos através da retirada do pâncreas (pancreatectomia total). Após testes em dezenas de cães, Marjorie foi a primeira cadela diabética tratada com sucesso com o extrato pancreático de Banting (a trigésima terceira participante do estudo). Em novembro de 1921, Banting passou a buscar extratos de pâncreas bovinos em abatedouros, aumentando assim sua capacidade de obter volumes maiores de extratos pancreáticos. Após uma série de avanços na purificação do extrato, um trabalho liderado pelo farmacêutico James Collip, a equipe testou o extrato em uma criança com diabetes tipo-1, de 14 anos, chamada Leonard Thompson em janeiro de 1922 com sucesso na reversão da hiperglicemia e glicosúria. Em 1923 Banting, Best, Macleod e Collip receberam o Prêmio Nobel pela descoberta da insulina. Curiosamente, eles deram o nome de insulina ao componente ativo do extrato sem saber que este nome já havia sido proposto por Schäfer anos antes.  

DOS LABORATÓRIOS PARA O MUNDO

Em maio de 1922, a empresa Eli Lilly passou a auxiliar os pesquisadores na geração de volumes maiores de insulina, e cada vez mais pacientes passaram a ser medicados com o produto. Até aquele tempo, o diagnóstico de diabetes mellitus era uma sentença de morte, especialmente para os pacientes insulino-dependentes. Ao longo de décadas a insulina utilizada para o tratamento de pessoas e de animais diabéticos foi realizado com insulina de origem bovina ou suína purificada. Nos anos 70, com a tecnologia do DNA recombinante, passou-se a sintetizar insulina humana em laboratório por bactérias geneticamente modificadas para este fim. As campanhas de marketing da época inclusive enfatizavam que com dado avanço, as pessoas diabéticas poderiam ser tratadas como pessoas, e não como um bovino ou suíno. De lá para cá houve muito avanço na formulação das apresentações de insulina, modificações pequenas na composição das soluções de insulina permitiram a criação de insulinas de ação rápida (regular), intermediárias (NPH, PZI), ou lentas (lenta), favorecendo escolhas mais racionais de insulina a diferentes situações e condições. Mais recentemente, modificações na estrutura da insulina permitiram a criação de análogos de insulina de ação ultra-rápida (lispro, aspart, glulisina) ou ultra-lenta (glargina, detemir, degludeca) que vem revolucionando a terapia da diabetes mellitus em pessoas, e em cães e gatos. No entanto, até hoje a necessidade de injeções frequentes de insulina ainda motivam pesquisas constantes para tentar evita-las. Para cães e gatos diabéticos, a necessidade de duas injeções diárias na quase totalidade dos casos representa um desafio a mais na terapia desta doença com prevalência crescente entre pessoas e animais de estimação. Algumas alternativas às injeções (como administração de insulina por via oral, supositórios e até por inalação) já foram propostas sem maior sucesso. Atualmente o uso de adesivos de insulina de longa ação parece estar sendo promissor em pessoas diabéticas. Pequenos pâncreas artificiais que continuamente mensuram a glicemia do paciente e injetam insulina de acordo com a necessidade estão disponíveis para pessoas, mas o custo elevado e as dificuldades de ajustes tornam esta alternativa ainda surreal para uso em medicina veterinária. O futuro para pessoas e animais dependentes de insulina parece estar na terapia com células tronco beta pancreáticas e na terapia gênica. Inúmeros trabalhos veem sendo desenvolvidos com sucesso neste sentido e poderão substituir a necessidade das injeções de insulina em um futuro próximo. Contudo, ainda hoje, quase um século após sua descoberta, as injeções de insulina ainda são as melhores alternativas terapêuticas que dispomos para nossos cães e gatos diabéticos, e para a enorme maioria das pessoas diabéticas insulinodependentes.
Banting e Macloud e a primeira cadela diabética tratada com insulina

ANTES: Registro de criança diabética antes do tratamento em dezembro de 1921.

DEPOIS: Registro da criança após terapia insulínica em março de 1922.

DICAS PARA O USO DA INSULINA NO DIA-A-DIA

Vale a pena reforçar alguns cuidados importantes para quem usa insulina diariamente em seu cão ou gato. A insulina é relativamente estável a temperatura ambiente, porém é fundamental que seja evitado o congelamento assim como exposição a temperaturas maiores que 25-30°C. Uma vez aberto, um frasco de insulina pode ser guardado sob refrigeração na geladeira, garantindo assim uma maior estabilidade do hormônio, e menor risco de proliferação bacteriana dentro do frasco. Apresentações de insulina na forma de canetas de aplicação tem uma tolerância maior em temperatura ambiente, e via de regra não precisam ficar refrigeradas. Frente a estas questões, é recomendado que um mesmo frasco de insulina não seja utilizado por muito mais do que 30 dias após ser aberto, independente do volume residual. Esta conduta evita o uso de uma insulina eventualmente degradada e com isso se garante que a insulina em uso está sempre com seu potencial máximo de ação. Insulinas como a NPH e a Caninsulin, de uso bastante frequente em cães, precisam ser homogeneizadas antes da aplicação. No entanto, esta homogeneização não deve ser muito vigorosa a ponto de desnaturar o hormônio (formar espuma no frasco), nem muito fraca, a ponto de não promover uma completa mistura da insulina com o veículo aquoso (evitando assim sub ou sobre doses). Realizar 12-15 movimentos de inversão do frasco antes de aspirar o conteúdo na seringa é suficiente na maioria das vezes. As insulinas glargina e detemir, de uso mais frequente em felinos, não necessitam maior homogeneização pré-aplicação por sua vez. Em caso de viagens é sempre indicado levar a insulina em um isopor adequadamente resfriado com gelo, porém não se pode permitir o contato direto do gelo com o frasco de insulina, pois a mesma pode congelar e perder função. Conforme o caso, vale a pena considerar a compra de um novo frasco no local de destino para evitar problemas relativos a eventual degradação do produto durante uma viagem (p.ex. ficar horas em um engarrafamento em um dia quente).  

HORÁRIO DAS DOSES

Pensando em viagens e eventos sociais, uma dica útil é com relação a eventuais atrasos na aplicação da insulina. Tutores de pacientes diabéticos costumam tornar-se muito ligados aos seus animais de estimação por conta das aplicações diárias de insulina, estreitando ainda mais um relacionamento de acima de tudo amor e respeito pela vida animal. Contudo, eventualmente pode ocorrer alguma impossibilidade de aplicar a insulina no horário exato indicado pelo veterinário, e agora o que fazer? A recomendação de aplicação a cada 12 horas deve sempre ser cumprida o mais a risca possível, contudo, adiantar ou atrasar eventualmente 20-30 minutos não traz maiores consequências ao controle glicêmico do pet. No entanto, caso necessário, é sempre mais seguro atrasar uma aplicação e depois ir ajustando aos poucos, do que tentar adiantar uma dose. Neste sentido, eu costumo recomendar aos meus clientes que nestes casos, jamais reapliquem a insulina antes de pelo menos 11 horas da última dose. Ou seja, um paciente que é medicado as 9h e 21h, e que uma determinada data precisa receber a insulina da noite as 24h por conta de um imprevisto. O que recomendo nestes casos é que aplique normalmente as 24h, e na manhã seguinte aplique a dose matutina mais tarde, por volta das 11:15 da manhã, a noite atrasando novamente para cerca de 22:30. Na manhã seguinte, a dose já pode ser puxada para cerca de 9:45, e a noite retomar o horário habitual 21h. Quando é possível prever o atraso devido a um evento social, pode-se ir previamente atrasando 45 minutos a cada aplicação nos turnos anteriores para reduzir o impacto do atraso no dia programado, e depois ir retornando gradualmente ao horário original da mesma forma.  

NA HORA DA APLICAÇÃO

Alguns cuidados durante a aplicação também devem ser observados! O álcool pode inativar a insulina, desta forma não se recomenda a aplicação de álcool nas seringas para higienização, bem como não é recomendado encharcar a pele do animal com álcool antes da aplicação. As seringas devem idealmente ser trocadas a cada aplicação, sendo “aceitável” uma a três reutilizações. Seringas reutilizadas podem ser mantidas na geladeira, e não demandam nenhum tipo de higienização. Ao preparar a pele do animal para aplicação, um algodão com uma pequena quantidade de álcool é útil para limpar o local, afastar os pelos e permitir uma adequada visualização da área a ser injetada. Por fim, duas dicas importantes: 1) se você usa canetas de aplicação, é importante observar um tempo de pelo menos 5 segundos após acionar o dispositivo de injeção antes de retirar a agulha do subcutâneo, pois apertar o botão e retirar a agulha rapidamente pode ocasionar que parte da dose a ser administrada extravase fora do paciente. 2) Se você estiver aplicando a insulina e seu animal se mexer durante a aplicação, jamais reaplique “um pouco mais” de insulina, pois não há como saber precisamente quanto de fato foi injetado. A ideia de aplicar um pouco mais coloca o paciente em risco de hipoglicemia, o que pode ser fatal eventualmente. É muito menos perigoso talvez ficar com a glicemia mais elevada naquele turno, até a nova aplicação de insulina, do que promover uma hipoglicemia.
Álan Gomes Pöppl
Álan Gomes Pöppl Médico Veterinário Mestre em Fisiologia Doutor em Ciências Veterinárias Sócio Fundador da ABEV Membro da Society for Comparative Endocrinology (SCE) Membro da European Society of Veterinary Endocrinology (ESVE) Professor Adjunto, Departamento Medicina Animal, Faculdade de Veterinária, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Contato: alan.poppl@ufrgs.br
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